sábado, 19 de dezembro de 2009

O bracelete


Ela achou que tinha encontrado o homem de sua vida, mas após o casamento ele mudou: era o boxeador que vira no ringue

Na Espanha, a Justiça pode impor aos homens que praticam violência contra Mulheres o uso de um bracelete eletrônico equipado com GPS. Logo que o homem se aproxima da mulher que agrediu ou ultrapassa o perímetro de segurança que a protege -na casa, no trabalho-, o Centro de Vigilância avisa a polícia.
Folha Online

Quando se conheceram, ela achou que tinha encontrado o homem de sua vida. Com boas razões: Pedro era bonito, alto, forte. Muito forte: halterofilista compulsivo, tinha bíceps gigantescos. Ah, sim, e era boxeador nas horas vagas; ela o acompanhou a várias lutas, nas quais ele mostrava uma ferocidade assombrosa, castigando os adversários com uma ininterrupta saraivada de murros.

Esses detalhes poderiam, naturalmente, ter servido como advertência; apaixonada como estava, contudo, ela não dava importância para essas coisas. O importante eram as ternas palavrinhas que Pedro lhe murmurava ao ouvido. Logo depois do casamento, contudo, ele mudou. Algo parecido à história do médico e do monstro, diria ela, depois, à sua advogada. Pedro agora mostrava o seu lado oculto.

Que nada tinha de gentil, longe disso. Ficou claro que era um homem violento, tão violento como o agressivo boxeador que ela vira no ringue. Gritava sem parar, tinha ataques de fúria. Um dia bateu nela. Um tapa apenas, mas era o começo: a partir daí as agressões se seguiram, e logo a moça estava exibindo equimoses, e lábios partidos, e olhos roxos. Coisas que tentava disfarçar com a maquiagem, mas que as amigas, a mãe, as irmãs não tardaram a perceber. Inquietas, começaram a pressioná-la: ela não poderia continuar com aquela situação, tinha de tomar alguma providência, o marido a mataria ou a deixaria aleijada.

Depois de uma surra particularmente violenta que resultou na fratura de uma clavícula, ela finalmente se decidiu: procurou uma advogada e iniciou o processo de divórcio. Coisa que Pedro não aceitava. Alegava que a amava, e, transtornado, disse que, consumado o divórcio, ele se vingaria. Não deu outra. No mesmo dia em que foi dada a sentença judicial, ele a esperou próximo à casa da mãe, para onde ela tinha se mudado, e na rua mesmo deu-lhe vários socos.

Aconselhada pela advogada, ela procurou a polícia. Pedro foi detido e, depois de um mês, liberado, mas com uma condição: teria de usar um bracelete especial, que alertaria as autoridades caso ele se aproximasse da casa ou do lugar de trabalho dela. Funcionou. Ele sumiu. E, depois de um tempo, começou a telefonar. Falava, falava muito, e num tom completamente diferente: garantia que tinha mudado, que agora reconhecia seus erros, e implorava por uma segunda chance.

A verdade é que ela o amava. E, apesar das advertências, aceitou a proposta. Avisou a polícia acerca da reconciliação e voltou para a casa que durante tanto tempo partilhara com Pedro. Ele a esperava com um presente. O equivalente, disse, a um anel de núpcias.
Um bracelete. O mesmo bracelete que ele usara quando era vigiado. Dizendo a polícia que o tinha perdido, levara-o a um joalheiro que o decorara com pequenas pedras preciosas. É o símbolo de que o passado ficou para trás, disse ele com um sorriso, de que estamos iniciando uma nova vida. Nova vida que parece boa, e ela está feliz. Mas às vezes se sente inquieta. Olha para o bracelete e parece ver ali uma algema. Uma algema que agora a aprisiona para sempre.

MOACYR SCLIAR escreve nesta página, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha. moacyr.scliar@uol.com.br


FONTE CLIPPING DA SPM/Folha de São Paulo
14/12/2009